quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Os Lusíadas - Dissecado e analisado

DEFINIÇÃO DE EPOPÉIA
Uma epopéia é a narrativa dos feitos grandiosos de um indivíduo ou de um povo. Nesta definição encontramos os elementos essenciais de qualquer texto épico.
Enquadra-se no gênero narrativo - é sempre um relato de acontecimentos: o sujeito da enunciação assume-se como narrador e dispõe-se a fazer o relato de um acontecimento ou conjunto de acontecimentos a um determinado público; a dimensão e a natureza do público dependem do assunto objeto do relato, presumindo-se que será sempre constituído pelas pessoas nele interessadas; se o assunto disser respeito a uma determinada comunidade o público será mais restrito; se o assunto tiver um interesse mais vasto, o público será mais alargado, podendo abranger potencialmente toda a humanidade.
O assunto deverá ter um caráter excepcional. Nem todas as ações são susceptíveis de serem tratadas de forma épica; é necessário que, no entendimento do narrador (e do seu público), essas ações se distanciem dos acontecimentos vulgares, assumam um caráter de excepcionalidade. Nas epopéias primitivas os feitos narrados são de caráter lendário, embora essas ficções tenham sempre um fundo histórico. Em algumas epopéias de imitação, no entanto, o assunto é histórico.
Os eventos exigem um agente e, tratando-se de eventos excepcionais, o agente deverá ser igualmente um ser de exceção, um ser que, pela sua origem, pelas suas características, se distancie, se imponha aos seus semelhantes (herói), pouco importando que se trate de um indivíduo ou de uma coletividade (herói individual ou herói coletivo). Na Ilíada e na Odisseia, escritas no século VI a.C., o herói é individual: num caso, Aquiles; no outro, Ulisses. N' Os Lusíadas o herói é, como o título indica, coletivo - o povo português. Já na Eneida de Virgílio há uma certa ambigüidade: o herói parece ser individual, Eneias, mas na realidade o objetivo do poema é exaltar o povo romano.
Característica de todas as epopéias é a utilização de um estilo elevado, correspondente à grandiosidade do assunto, e que se traduz na seleção vocabular, na construção frásica extremamente elaborada e na abundante utilização de recursos estilísticos.

Estrutura externa
Os Lusíadas estão divididos em dez cantos, cada um deles com um número variável de estrofes, que, no total, somam 1102. Essas estrofes são todas oitavas de decassílabos heróicos, obedecendo ao esquema rimático "abababcc" (rimas cruzadas, nos seis primeiros versos, e emparelhada, nos dois últimos).

Estrutura interna
Camões respeitou com bastante fidelidade a estrutura clássica da epopéia. N' Os Lusíadas são claramente identificáveis quatro partes.

Proposição - O poeta começa por declarar aquilo que se propõe fazer, indicando de forma sucinta o assunto da sua narrativa; propõe-se, afinal, tornar conhecidos os navegadores que tornaram possível o império português no oriente, os reis que promoveram a expansão da fé e do império, bem como todos aqueles que se tornam dignos de admiração pelos seus feitos.

Invocação - O poeta dirige-se às Tágides (ninfas do Tejo), para lhes pedir o estilo e eloquência necessários à execução da sua obra; um assunto tão grandioso exigia um estilo elevado, uma eloquência superior; daí a necessidade de solicitar o auxílio das entidades protectoras dos artistas.

Dedicatória - É a parte em que o poeta oferece a sua obra ao rei D. Sebastião. A dedicatória não fazia parte da estrutura das epopéias primitivas; trata-se de uma inovação posterior, que reflete o estatuto do artista, intelectualmente superior, mas social e economicamente dependente de um mecenas, um protetor.

Narração - Constitui o núcleo fundamental da epopéia. Aqui, o poeta procura concretizar aquilo que se propôs fazer na "proposição".

Estrutura da narração
A narração d' Os Lusíadas tem uma estrutura muito complexa, o que decorre dos objetivos que o poeta se propôs. Desenvolve-se em quatro planos diferentes, mas estreitamente articulados entre si.

Plano da viagem - A ação central do poema é a viagem de Vasco da Gama. Escrevendo mais de meio século depois, Luís de Camões tinha já o distanciamento suficiente para perceber a importância histórica desse acontecimento, devido às alterações que provocou, tanto em Portugal, como na Europa. Por essa razão considerou a primeira viagem marítima à Índia como o episódio mais significativo da história de Portugal.
No entanto, tratava-se de um acontecimento relativamente recente e historicamente documentado. Para manter a verossimilhança, o poeta estava obrigado a fazer um relato relativamente objetivo e potencialmente monótono, o que constituía um perigo fatal para o seu projeto épico. Daí que Camões tenha sentido a necessidade de introduzir um segundo nível narrativo.

Plano mitológico (conflito entre os deuses pagãos) - Camões imaginou um conflito entre os deuses pagãos: Baco opõe-se à chegada dos portugueses à Índia, pois receia que o seu prestígio seja colocado em segundo plano pela glória dos portugueses, enquanto Vênus, apoiada por Marte, os protege.
Pode parecer estranho que Camões incluísse num poema destinado a exaltar um povo cristão os deuses pagãos, mas algumas razões permitem compreender essa atitude:

1) Como vimos, a simples narrativa da viagem seria algo monótona, tanto mais que Vasco da Gama e os seus marinheiros têm um caráter rígido, quase inumano: são determinados e inflexíveis, imunes às hesitações, à dúvida, às angústias. Não há ao nível da viagem qualquer conflito. Para introduzir o necessário dramatismo na narrativa, Camões teve que imaginar um conflito externo, o conflito entre Vênus e Baco.

2) Os poemas épicos renascentistas são epopéias de imitação e como tal sujeitas a regras estritas. Uma dessas regras impunha ao poeta a introdução de episódios maravilhosos, envolvendo quase sempre deuses da mitologia greco-latina, à semelhança do que acontecia nos poemas homéricos ou na Eneida.

3) Finalmente, o recurso aos deuses pagãos é mais uma forma de o poeta engrandecer os feitos dos portugueses. Nas suas intervenções, os deuses freqüentemente referem-se de forma elogiosa. Além disso, o simples fato de a disputa entre os deuses ter como objeto os portugueses é já uma forma indireta de exaltá-los.

Plano da História de Portugal - O objetivo de Camões era enaltecer o povo português e não apenas um ou alguns dos seus representantes mais ilustres. Não podia por isso limitar a matéria épica à viagem de Vasco da Gama. Tinha que introduzir na narrativa todas aquelas figuras e acontecimentos que, no seu conjunto, afirmavam o valor dos portugueses ao longo dos tempos. E fê-lo, recorrendo a duas narrativas secundárias, inseridas na narrativa da viagem, cujo narrador é o poeta.

1) Narrativa de Vasco da Gama ao rei de Melinde - Ao chegar a este porto indiano, o rei recebe-o e procura saber quem é ele e donde vem. Para lhe responder, Vasco da Gama localiza o reino de Portugal na Europa e conta-lhe a História de Portugal até ao reinado de D. Manuel. Ao chegar a este ponto, conta inclusivamente a sua própria viagem desde a saída de Lisboa até chegarem ao Oceano Índico, visto que a narrativa principal iniciara-se "in media res”, isto é quando a armada já se encontrava em frente às costas de Moçambique.

2) Narrativa de Paulo da Gama ao Catual - Mais tarde surge outra narrativa secundária. Em Calecut, uma personalidade hindu (Catual) visita o navio de Paulo da Gama, que se encontra enfeitado com bandeiras alusivas a figuras históricas portuguesas. O visitante pergunta-lhe o significado daquelas bandeiras, o que dá a Paulo da Gama o pretexto para narrar vários episódios da História de Portugal.

3) Profecias - Os acontecimentos posteriores à viagem de Vasco da Gama não podiam ser introduzidos na narrativa como fatos históricos. Para isso, Camões recorreu a profecias colocadas na boca de Júpiter, Adamastor e Thétis, principalmente.

Plano das considerações do poeta - Por vezes, normalmente em final de canto, a narração é interrompida para o poeta apresentar reflexões de caráter pessoal sobre assuntos diversos, a propósito dos fatos narrados.
Simbologia da "Ilha dos Amores"

Terminada a viagem do Gama e antes de regressarem a Portugal, o poeta dirige os nautas para a Ilha dos Amores, onde, por ação de Vênus e Cupido, receberão o prêmio do seu esforço.

Trata-se de uma ilha paradisíaca, de uma beleza deslumbrante. A descrição do consórcio entre os portugueses e as ninfas está repassada de sensualidade. Os prazeres que lhes são oferecidos são o justo prêmio por terem perseguido o seu objetivo sem hesitações.

Todo o episódio tem um caráter simbólico.

Em primeiro lugar, serve para desmitificar o recurso à mitologia pagã, apresentada aqui como simples ficção, útil para "fazer versos deleitosos".
Em segundo lugar, representa a glorificação do povo português, a quem é reconhecido um estatuto de excepcionalidade. Pelo seu esforço continuado, pela sua persistência, pela sua fidelidade à tarefa de expansão da fé cristã, os portugueses como que se divinizam. Tornam-se assim dignos de ombrear com os deuses, adquirindo um estatuto de imortalidade que é afinal o prêmio máximo a que pode aspirar o ser humano.
OBS.: mais informações sobre a obra= http://pwp.netcabo.pt/0511134301/lusiadas.htm

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