"Para compreender Ricardo Reis há que compreender a face mais rígida de Pessoa, a sua face helenista, de cultor do classicismo. Porque Reis é sobretudo isso - rigor, forma, disciplina. Neste heterónimo Pessoa põe essa sua faceta que lhe veio provavelmente da sua educação sobre moldes britânicos, quando residia ainda na África do Sul.
Como clássico, Reis prescreve a quem o lê estritas leis de conduta, que seguem sempre cânones muito bem definidos e baseados em apenas alguns princípios inabaláveis. Como Caeiro ele afasta-se da vida, mas tem já perante ela uma outra perspectiva que não é apenas de abandono - Reis aceita o que a vida lhe dá, e vê nessa aceitação a sua nobreza em resistir às adversidades (estoicismo) ao mesmo tempo que se deleita na contemplação das coisas que acontecem sem que eles intervenha (epicurismo).
Como regra latina que é, a filosofia de Reis assemelha-se ao funcionar de um relógio - tem uma cadência certa e perene e fala ao coração mas de modo a não nos emocionar. Tem uma grande tristeza, mas que se apaga em significado perante o modo solene como ele se nos apresenta. Reis é acima de tudo um sobrevivente, que escolhe a vida que tem como um soldado escolhe morrer pela sua Pátria.
Os temas que aborda são os temas clássicos e nada mais do que isso. Fala da morte e da vida, do prazer e da dor, dos homens e dos deuses. Não é abstracto e o seu léxico é por isso mesmo limitado e mesmo repetitivo.
Os seus poemas são odes - ode quer dizer canção - geralmente de quatro versos, dois decassilábicos e dois hexassilábicos com versos brancos e sem rima. Embora Reis varie, este seria o esquema ideal, denominado estrofe alcaica Horaciana.
A ode define-se também por seguir uma estrutura rígida em três partes: estrofe, antiestrofe e epodo - tema, desenvolvimento (resposta ao tema) e conclusão do poema.
Passemos ao poema em questão.
Escrito em 12/6/1914 o poema supostamente seria o poema inicial do projetado livro de Odes de Ricardo Reis, num dos projetos de Fernando Pessoa, nunca acabado. A importância de ser um poema de abertura é crucial, veremos já porquê.
Reis começa onde Caeiro acabara. O "Mestre" a quem ele se refere é obviamente o "Mestre" Caeiro. Ora, Reis, como discípulo, presta homenagem ao Mestre quando inicia a sua própria obra. Mas a sua homenagem é de certo modo insidiosa, porque ao homenageá-lo, Reis simultaneamente mata a sua influência, nega-o, supera-o, para ser ele também o seu próprio Mestre.
O tema é então um tributo, a Caeiro. Mas um tributo terrível. Reis prepara-se para negar Caeiro. Ele diz: "Mestre, são plácidas / Todas as horas / Que nós perdemos, / Se no perdê-las, / Qual numa jarra, / Nós pomos flores.", ou seja, não nos devemos afastar totalmente da vida, porque as horas perdidas em viver nunca são verdadeiramente perdidas, se as tornarmos num símbolo concreto, se lhes dermos a nobreza de as aceitar viver.
Reis quer distanciar-se de Caeiro, que falhara na sua missão, especialmente escrevendo os "Poemas Inconjuntos" e o "Pastor Amoroso". Reis mostra que tem uma nova perspectiva.
É um afastamento como o de Caeiro, mas um afastamento diferente que não nega a vida, antes a aceita como inevitável. Se é inevitável - diz Reis - devemos aceitá-la com nobreza, sofrer estoicamente a vida.
Escolhe Reis as flores como símbolo máximo da beleza fixa, mas ao mesmo tempo efémera - como a própria vida. Colocadas na jarra, as horas tornam-se imóveis e eternas, nunca cessam nem envelhecem, mas ao mesmo tempo sentem-se acabar num momento. O ideal estético aqui sobrepõe-se à realidade imanente - Reis idealiza a vida para a aceitar.
O verso seguinte confirma o que dizemos. "Não há tristezas / Nem alegrias (...)", ou seja, não existem emoções, se ao menos saibamos não viver a vida. O sofrimento pode ser evitado, evitando a vida ela mesma, evitando ser vividos por ela em vez de sermos nós a vivê-la.
O que fazer então? Reis aconselha-nos a "decorrê-la / Tranquilos , plácidos", como "crianças", com os "olhos cheios de Natureza". Essa Natureza que ele certamente desconhece, como Caeiro desconhecia e apenas cantava, mas que é ainda o alvo da sua atenção como poeta Pagão.
Passando pela vida, num "leve descanso", Reis espera não ter de se confrontar com os mesmos obstáculos do seu Mestre Caeiro. Parece afirmar perante si próprio que a sua missão está de certo modo facilitada - ele escolhe o seu próprio caminho e não precisa de se descobrir. A sua natureza é uma afirmação, uma escolha e não uma descoberta.
É uma questão de deixar "o tempo ir" - certamente não uma opinião do próprio Fernando Pessoa que tão interventivo era no seu tempo - para que tudo finde um dia futuro.
Resistir - isso está fora de questão, correndo o risco de enfurecer o deus que come os seus próprios filhos. (Será Saturno a devorar os próprios filhos, seguindo o mito Romano, na imagem marcante de Goya?).
A calma necessária para esta falta de actividade, para esta ataraxia, é aprendida com a Natureza. Eis o papel da Natureza em Reis - como exemplo eficaz de algo que passa pelo tempo mas que fica sempre igual, que em rigor aceita o tempo e a mudança com nobreza. Basta que aprendamos com ela a ficar imóveis perante o tempo, que decidamos não mudar nada à nossa volta. "Colhamos flores" e "molhemos as mãos nos rios calmos".
Como girassóis que olham o Sol - nova referência a uma flor - Reis espera que assim passemos ao lado de tudo, incólumes, sem influir nem sermos modificados, quase que figuras estranhas em sombra, pintados num qualquer quadro, sem grande pormenor, mas ainda assim almas humanas, ainda assim vidas conscientes.
Eis o testemunho pagão de um crente nos deuses antigos. Porque crê neles todos não crê em nenhum e o seu sentimento frio é "inteligente"; nas suas próprias palavras. Sentimento religioso vindo da inteligência que confronta o que o homem tem de divino com o que pode ter de profano e que no final deixa muito pouco - um resto ralo, uma água descolorada a que chamar vida."
Como clássico, Reis prescreve a quem o lê estritas leis de conduta, que seguem sempre cânones muito bem definidos e baseados em apenas alguns princípios inabaláveis. Como Caeiro ele afasta-se da vida, mas tem já perante ela uma outra perspectiva que não é apenas de abandono - Reis aceita o que a vida lhe dá, e vê nessa aceitação a sua nobreza em resistir às adversidades (estoicismo) ao mesmo tempo que se deleita na contemplação das coisas que acontecem sem que eles intervenha (epicurismo).
Como regra latina que é, a filosofia de Reis assemelha-se ao funcionar de um relógio - tem uma cadência certa e perene e fala ao coração mas de modo a não nos emocionar. Tem uma grande tristeza, mas que se apaga em significado perante o modo solene como ele se nos apresenta. Reis é acima de tudo um sobrevivente, que escolhe a vida que tem como um soldado escolhe morrer pela sua Pátria.
Os temas que aborda são os temas clássicos e nada mais do que isso. Fala da morte e da vida, do prazer e da dor, dos homens e dos deuses. Não é abstracto e o seu léxico é por isso mesmo limitado e mesmo repetitivo.
Os seus poemas são odes - ode quer dizer canção - geralmente de quatro versos, dois decassilábicos e dois hexassilábicos com versos brancos e sem rima. Embora Reis varie, este seria o esquema ideal, denominado estrofe alcaica Horaciana.
A ode define-se também por seguir uma estrutura rígida em três partes: estrofe, antiestrofe e epodo - tema, desenvolvimento (resposta ao tema) e conclusão do poema.
Passemos ao poema em questão.
Escrito em 12/6/1914 o poema supostamente seria o poema inicial do projetado livro de Odes de Ricardo Reis, num dos projetos de Fernando Pessoa, nunca acabado. A importância de ser um poema de abertura é crucial, veremos já porquê.
Reis começa onde Caeiro acabara. O "Mestre" a quem ele se refere é obviamente o "Mestre" Caeiro. Ora, Reis, como discípulo, presta homenagem ao Mestre quando inicia a sua própria obra. Mas a sua homenagem é de certo modo insidiosa, porque ao homenageá-lo, Reis simultaneamente mata a sua influência, nega-o, supera-o, para ser ele também o seu próprio Mestre.
O tema é então um tributo, a Caeiro. Mas um tributo terrível. Reis prepara-se para negar Caeiro. Ele diz: "Mestre, são plácidas / Todas as horas / Que nós perdemos, / Se no perdê-las, / Qual numa jarra, / Nós pomos flores.", ou seja, não nos devemos afastar totalmente da vida, porque as horas perdidas em viver nunca são verdadeiramente perdidas, se as tornarmos num símbolo concreto, se lhes dermos a nobreza de as aceitar viver.
Reis quer distanciar-se de Caeiro, que falhara na sua missão, especialmente escrevendo os "Poemas Inconjuntos" e o "Pastor Amoroso". Reis mostra que tem uma nova perspectiva.
É um afastamento como o de Caeiro, mas um afastamento diferente que não nega a vida, antes a aceita como inevitável. Se é inevitável - diz Reis - devemos aceitá-la com nobreza, sofrer estoicamente a vida.
Escolhe Reis as flores como símbolo máximo da beleza fixa, mas ao mesmo tempo efémera - como a própria vida. Colocadas na jarra, as horas tornam-se imóveis e eternas, nunca cessam nem envelhecem, mas ao mesmo tempo sentem-se acabar num momento. O ideal estético aqui sobrepõe-se à realidade imanente - Reis idealiza a vida para a aceitar.
O verso seguinte confirma o que dizemos. "Não há tristezas / Nem alegrias (...)", ou seja, não existem emoções, se ao menos saibamos não viver a vida. O sofrimento pode ser evitado, evitando a vida ela mesma, evitando ser vividos por ela em vez de sermos nós a vivê-la.
O que fazer então? Reis aconselha-nos a "decorrê-la / Tranquilos , plácidos", como "crianças", com os "olhos cheios de Natureza". Essa Natureza que ele certamente desconhece, como Caeiro desconhecia e apenas cantava, mas que é ainda o alvo da sua atenção como poeta Pagão.
Passando pela vida, num "leve descanso", Reis espera não ter de se confrontar com os mesmos obstáculos do seu Mestre Caeiro. Parece afirmar perante si próprio que a sua missão está de certo modo facilitada - ele escolhe o seu próprio caminho e não precisa de se descobrir. A sua natureza é uma afirmação, uma escolha e não uma descoberta.
É uma questão de deixar "o tempo ir" - certamente não uma opinião do próprio Fernando Pessoa que tão interventivo era no seu tempo - para que tudo finde um dia futuro.
Resistir - isso está fora de questão, correndo o risco de enfurecer o deus que come os seus próprios filhos. (Será Saturno a devorar os próprios filhos, seguindo o mito Romano, na imagem marcante de Goya?).
A calma necessária para esta falta de actividade, para esta ataraxia, é aprendida com a Natureza. Eis o papel da Natureza em Reis - como exemplo eficaz de algo que passa pelo tempo mas que fica sempre igual, que em rigor aceita o tempo e a mudança com nobreza. Basta que aprendamos com ela a ficar imóveis perante o tempo, que decidamos não mudar nada à nossa volta. "Colhamos flores" e "molhemos as mãos nos rios calmos".
Como girassóis que olham o Sol - nova referência a uma flor - Reis espera que assim passemos ao lado de tudo, incólumes, sem influir nem sermos modificados, quase que figuras estranhas em sombra, pintados num qualquer quadro, sem grande pormenor, mas ainda assim almas humanas, ainda assim vidas conscientes.
Eis o testemunho pagão de um crente nos deuses antigos. Porque crê neles todos não crê em nenhum e o seu sentimento frio é "inteligente"; nas suas próprias palavras. Sentimento religioso vindo da inteligência que confronta o que o homem tem de divino com o que pode ter de profano e que no final deixa muito pouco - um resto ralo, uma água descolorada a que chamar vida."
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