Clarice Lispector
No romance Perto do Coração Selvagem (primeiro romance de Clarice Lispector - 1944) é notória a aproximação com os ficcionistas de vanguarda da época, James Joyce, Virgínia Woolf e William Faulkner, pelo uso intensivo da metáfora insólita, entrega ao fluxo da consciência e ruptura com o enredo final.
Caracteriza-se pela exacerbação do momento interior de tal modo intensa, que, a certa altura de seu itinerário, a própria subjetividade entra em crise. O espírito, perdido no labirinto da memória e da auto-análise, reclama um novo equilíbrio, transcendendo do plano psicológico para o metafísico. A própria narradora revela a consciência desse salto, quando diz: Além do mais a "psicologia" nunca me interessou. O olhar psicológico me impacientava e me impacienta, é um instrumento que só transpassa. Acho que desde a adolescência eu havia saído do estágio do psicológico.
A prosa leve discorre com fluência e fluidez nos meandros da protagonista, na sua visão de mundo e interação com os demais personagens. Tudo isso revelou Clarice Lispector como mais que mera promessa na prosa da Geração de 45. É o texto do sensível e do imaginário, ora enfrentando ora diluindo-se aos incidentes reais de Joana.
A amoralidade diante da maldade. O instinto na condução da trama, com uma certa dose de auto-martírio. A história de Joana (protagonista) - não a Virgem d'Orleans, mas a personagem de Clarice Lispector nesta obra de estréia, marcou a ficção brasileira em 1944. A narrativa inovadora provocou frisson nos círculos literários. A técnica de Clarice Lispector funde subjetividade com objetividade, alterna os focos literários e o tempo cronológico dá lugar ao psicológico (o presente entremeado ao intermitente flashback). Joana expressa, por fluxos de consciência, sua vida interior, contrapondo suas experiências de menina às de adulta, mergulhando ora no passado, ora no presente, segundo o fio condutor da memória.
Deve-se ler a obra com instrumentos de anatomia: usa-se bisturi para dissecá-la e pinça para estudar os personagens como órgãos autônomos, que se ligam por estranhas artérias e nervos à personagem de coração e cérebro Joana. São eles: o pai prematuramente falecido, incentivador das brincadeiras na infância; a tia assustada com as estripulias da órfã, a quem chama de víbora; o tio fazendeiro, afetuoso com Joana e abúlico diante das reclamações da mulher; o professor confidente e orientador (como a paixão da puberdade); Otávio, o rapaz que se casa com Joana ao romper o noivado com Lígia, de quem posteriormente se torna amante; Lígia, grávida de Otávio, conta tudo à protagonista; o homem sem nome, sustentado pela mulher, participante silenciosa do romance clandestino e sem compromisso dele com Joana.
A leitura é caleidoscópica. A protagonista ora tem uma cor, ora outra, conforme o momento ("real" ou onírico). As cores dançam no enredo misturado ao cenário e às sensações da menina-mulher-amante. Joana desfila na vida dos outros personagens, destilando o veneno de víbora, instilado com ironia e respostas cruéis diante dos fatos. A leitura também é lúdica, quando o leitor tenta adivinhar o que a autora preparou páginas adiante e se surpreende com o que presencia.
Nano Moreira
Prof. Literatura Brasileira Clarice Lispector
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